Custaram-me dois dias para processar a perda de um honorável amigo, Marçal Ribeiro dos Santos. Este texto é a mínima homenagem que posso prestar a este amigo tão querido, que gostava de ler as coisas que eu escrevia. Para quem conheceu Marçal, as linhas que se seguem talvez tragam um turbilhão de outras memórias. Para quem não o conheceu, é uma oportunidade de saber que existem homens de grande valor, anônimos, espalhados pelos rincões distantes desse país.
Conheci Marçal em maio de 2005, no Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Lucas do Rio Verde. Eu estava em Mato Grosso há apenas um mês, e viajara ao STTR para participar do início do Ponto de Cultura do Nortão, com lideranças camponesas da BR-163. Era o começo de minha imersão na Amazônia Meridional, em seus problemas e suas lutas.
Marçal nos deixou na madrugada do dia 14 de fevereiro, vítima de insuficiência respiratória.
Um ano depois, facilitei uma oficina de repórteres populares para o mesmo grupo no STTR. Entre os agricultores que se encantavam com as possibilidades do rádio e da internet, estavam Marçal e Luir Garbin. Os dois recém tinham assumido a grande responsabilidade de coordenar um projeto de três anos de fomento a alternativas ao fogo e às queimadas, e tinham a tarefa de, naquela oficina, produzir um jornal para comunicar as mudanças do projeto para a associação no seu assentamento. A associação era a Aproger, o assentamento, Entre Rios. Entidade, local e sujeitos da minha dissertação de mestrado, que será defendida daqui um mês.
Comecei com eles uma relação de amizade e parceria que duraria muitos cursos, intercâmbios e eventos da rede de movimentos sociais da BR-163. Sempre admirei em ambos a bravura de assumir um desafio que nos outros projetos era enfrentado por agrônomos, engenheiros florestais, técnicos experientes. E eles cumpriram a tarefa com extremo louvor. São pessoas muito especiais, que me receberam em suas casas e suas vidas como se eu fosse da família.
Marçal era uma figura cativante. Sempre com um chiste na ponta da língua, sempre com um abraço cheio de carinho, sempre com ideias interessantes para ajudar sua comunidade a descobrir novos caminhos de desenvolvimento. Era também a fragilidade humana em pessoa, lutando pela vida a cada gole de ar. Eu ficava dividida entre o prazer de nossas longas conversas e a angústia de ver quanto esforço essas conversas demandavam dele.
Um homem de ideias arrojadas e propósitos firmes. Uma vez dada sua palavra, tolo era quem pensasse que ele não a cumpriria. Junto com as outras lideranças do Entre Rios, consolidou uma associação de agricultores estruturada para desenvolver uma economia verde no assentamento, feita de mel e frutas. Ao longo desse processo, colecionou também desafetos, como todos aqueles que ousam pensar e agir por uma Amazônia mais sustentável. Denunciou queimadas ilegais no assentamento e foi acusado de ambientalista, um rótulo pouco saudável de se carregar por estas bandas. Sofreu pressões e ameaças, como tantas e tantas lideranças na última fronteira agrícola do país.
Mas tinha muita força e esperança armazenadas em seu corpo frágil. Foi com elas, e com muito amor e carinho, que construiu uma família linda, amorosa, unida; e um sítio que é exemplo de que os assentados podem viver de muito mais do que seu gado magro. Marçal coletava sementes e mudas por onde passava. Em casa, sua família plantava e multiplicava cada árvore com paciência, para depois compartilhar com os vizinhos de travessão e enriquecer o viveiro da Aproger. O fogo dos outros liquidou com suas agroflorestas duas vezes nos últimos quatro anos, mas elas sempre são replantadas. Sua família e seu sítio no assentamento são prova viva do valor deste grande homem.
No ano passado, a saúde de Marçal piorou. Esteve hospitalizado dois longos períodos e já não respirava sem ajuda de uma máquina ou dos balões de oxigênio. Quando deixei sua casa em novembro do ano passado, no último campo da minha pesquisa, eu estava crente de que ele conseguiria passar pelo transplante e vencer sua batalha por cada gole de ar. Infelizmente, não houve tempo. Ele não irá colher os frutos de sua luta por uma vida digna e confortável num dos tantos assentamentos da dita reforma agrária, abandonados pelo poder público. Sem estrada, sem assistência técnica, sem infraestrutura, sem apoio à comercialização, sem nenhum valor para o poder público além de um número para suas peças de publicidade.
Por Gisele Neuls
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